terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Escolha a sua arma.

          Tenho memória seletiva, lembro-me muito bem porque escolhi tê-la.

          Na minha adolescência vivi em um internato; eram grandes escolas criadas especialmente para que as meninas burguesas, filhas de pais estancieiros ou figuras ilustres do interior, pudessem estudar. Não era o meu caso, porque era pobre, órfã e morava na capital, porém, com amparo de meus pais adotivos que muito se preocupavam com o meu futuro, essa seria a melhor maneira de  assegurarem  minha educação, o único bem que ia possuir, além de uma pensão deixada por meu pai legítimo.

          Apesar da escola transmitir grande instrução e ensinamento, éramos completamente  abandonadas emocionalmente. Não estou lamentando, não, porque a escola deu-me o necessário e traçou o caráter que hoje possuo,além de dar-me o essencial para que pudesse trilhar o meu caminho profissional.

          Era uma dessas meninas bobonas que fazem e aceitam tudo o que as mais velhas ou mandonas querem. -Ai que não fizesse pra ver! Era agredida covardemente!-

          Resolvi achar um recurso para não ser mais apanhada como "judas" nas recreações. Escondia-me na biblioteca para ler. Lia muito, principalmente romances próprios da idade (de Madame Delly). Ficava lá, lendo e sonhando.Era muito bom. A irmã (freira) da biblioteca incentivava as minhas leituras e muitas vezes quando chegavam livros novos ela mandava um bilhetinho com o nome e o autor para que fizesse a retirada. Gostava muito dela era meu anjo da guarda sem saber, nunca eu havia mencionado a ela o motivo das minhas fugidas para a biblioteca.

          Consegui escapar das surras por um bom tempo. Tempo suficiente para  que a outra freira (irmã Alcina) começasse a ficar preocupada de não participar das recreações. Ela notou... Aí começou o meu calvário. Enquanto uma freira era o meu anjo a outra era o diabo em pessoa. Onde ela estivesse, ouvia-se  o sinal para a recreação, lá vinha a irmã diaba querer me retirar da biblioteca. Eu queria entender porque ela era implicante comigo. Enquanto uma me protegia a outra queria me  atirar às leoas.

          Resolvi adoecer! Toda vez que ela vinha para o meu lado eu vomitava. Toda vez que ela vinha para o meu lado eu tinha dores horríveis de barriga. Toda vez que ela vinha para o meu lado eu tinha dores de estômago ou de cabeça. Assim conseguia ir driblando a irmã diaba. A fuga ,agora, já não era só das meninas mas, também da irmã diaba. 

         Numa dessas tentativas de fuga ,adoeci  de verdade. Fui parar na enfermaria com muita febre, meus dentes afrouxaram e saia muita infecção no espaço entre eles. Até hoje não sei o que tive. Sei que chamaram meus pais para levarem -me ao médico, o caso era para o dentista, lá fui eu para o dentista fazer o tratamento. Estava feliz , não estava na escola. Sentia falta das leituras e da irmã 'anja', só.  

          Chegou o dia da minha volta, eu novamente iria enfrentar as feras e a irmã diaba. Ninguém sabia porque eu fugia, nunca contei a ninguém. Era meu segredo. Quando retornei à escola irmã diaba estava no interior para os funerais de alguém que nem lembro quem. Assim foi a notícia que me deram e eu esfuziante de alegria pela morte do tal parente, pensei: "Descanso das leoas e da irmã diaba." Fuga para as leituras !

          Certa manhã, na hora do café, ouvi uma voz alta e forte, reconheci e novamente, me entristeci. Terminado o café vi aquela figura alta e forte(tudo nela era forte), vindo em minha direção, ordenando que eu ficasse no refeitório porque queria conversar comigo. Eu literalmente urinei nas calças. Ela, sem pena nenhuma por estar molhada, sentou-se ao meu lado com ar maternal, voz suave e disse: "Menina, um dia você vai crescer, vai embora daqui para caminhar só. Poderá ter, ou não, um lugar para se refugiar quando precisar se esconder. Poderá, ter ou não, uma pessoa para estar ao seu lado quando tiver medo. Poderá sonhar, ou não, com suas leituras, mas aconselho que você use suas garras nos momentos difíceis, lute sempre que for necessário, brigue sempre que tiver razão e não dê ouvidos a tudo que lhe digam. Siga com o coração e escolha uma arma para lutar com seus inimigos !" Dito isso entregou-me um papel com essas mesmas palavras escritas para que eu guardasse.

          Confesso que vi o diabo transformar-se em anjo, fiquei pasma ! Ela sabia de tudo, ela via tudo, ela sentia tudo. Suas  palavras, a minha memória nunca apagou. Levou-me ao banho, troquei minha roupa e fui direto para a aula,dali para a recreação. Resolvi que minha luta começaria,escolhi a minha arma e ,desde então,decidi ouvir só o que queria ouvir. Continuei apanhando, mas agora, reagia também.

          Tenho memória seletiva, O seu uso não me faz mal algum, pelo contrário, muitas vezes livra-me de situações embaraçosas, as famosas "saias justas" em que nos metemos, então lanço mão da famosa frase: "Desculpe, tenho memória seletiva, não só para assuntos ruins mas muitas vezes porque os momentos  foram muito empolgantes." Tudo fica bem esclarecido.(elpis)

                                  

                                    

 

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