Escolha a sua arma.
Tenho memória seletiva, lembro-me muito bem porque escolhi tê-la.
Na minha adolescência vivi em um internato; eram grandes escolas
criadas especialmente para que as meninas burguesas, filhas de pais
estancieiros ou figuras ilustres do interior, pudessem estudar. Não era
o meu caso, porque era pobre, órfã e morava na capital, porém, com
amparo de meus pais adotivos que muito se preocupavam com o meu futuro,
essa seria a melhor maneira de assegurarem minha educação, o
único bem que ia possuir, além de uma pensão deixada por meu pai
legítimo.
Apesar da escola transmitir grande instrução e ensinamento, éramos
completamente abandonadas emocionalmente. Não estou lamentando, não,
porque a escola deu-me o necessário e traçou o caráter que hoje
possuo,além de dar-me o essencial para que pudesse trilhar o meu
caminho profissional.
Era uma dessas meninas bobonas que fazem e aceitam tudo o que as
mais velhas ou mandonas querem. -Ai que não fizesse pra ver! Era
agredida covardemente!-
Resolvi achar um recurso para não ser mais apanhada como "judas" nas
recreações. Escondia-me na biblioteca para ler. Lia muito,
principalmente romances próprios da idade (de Madame Delly). Ficava lá,
lendo e sonhando.Era muito bom. A irmã (freira) da biblioteca
incentivava as minhas leituras e muitas vezes quando chegavam livros
novos ela mandava um bilhetinho com o nome e o autor para que fizesse a
retirada. Gostava muito dela era meu anjo da guarda sem saber, nunca eu
havia mencionado a ela o motivo das minhas fugidas para a biblioteca.
Consegui escapar das surras por um bom tempo. Tempo suficiente para
que a outra freira (irmã Alcina) começasse a ficar preocupada de não
participar das recreações. Ela notou... Aí começou o meu calvário.
Enquanto uma freira era o meu anjo a outra era o diabo em pessoa. Onde
ela estivesse, ouvia-se o sinal para a recreação, lá vinha a irmã diaba
querer me retirar da biblioteca. Eu queria entender porque ela era
implicante comigo. Enquanto uma me protegia a outra queria me atirar às
leoas.
Resolvi adoecer! Toda vez que ela vinha para o meu lado eu vomitava.
Toda vez que ela vinha para o meu lado eu tinha dores horríveis de
barriga. Toda vez que ela vinha para o meu lado eu tinha dores de
estômago ou de cabeça. Assim conseguia ir driblando a irmã diaba. A fuga ,agora, já não era só das meninas mas, também da irmã diaba.
Numa
dessas tentativas de fuga ,adoeci de verdade. Fui parar na enfermaria com
muita febre, meus dentes afrouxaram e saia muita infecção no espaço
entre eles. Até hoje não sei o que tive. Sei que chamaram meus pais para
levarem -me ao médico, o caso era para o dentista, lá fui eu para o
dentista fazer o tratamento. Estava feliz , não estava na escola. Sentia
falta das leituras e da irmã 'anja', só.
Chegou o dia da minha volta, eu novamente iria enfrentar as feras e a
irmã diaba. Ninguém sabia porque eu fugia, nunca contei a ninguém. Era
meu segredo. Quando retornei à escola irmã diaba estava no interior para
os funerais de alguém que nem lembro quem. Assim foi a notícia que me
deram e eu esfuziante de alegria pela morte do tal parente, pensei:
"Descanso das leoas e da irmã diaba." Fuga para as leituras !
Certa manhã, na hora do café, ouvi uma voz alta e forte, reconheci e
novamente, me entristeci. Terminado o café vi aquela figura alta e forte(tudo nela era forte), vindo em minha direção, ordenando que eu ficasse
no refeitório porque queria conversar comigo. Eu literalmente urinei nas
calças. Ela, sem pena nenhuma por estar molhada, sentou-se ao meu
lado com ar maternal, voz suave e disse: "Menina, um dia você vai
crescer, vai embora daqui para caminhar só. Poderá ter, ou não, um lugar
para se refugiar quando precisar se esconder. Poderá, ter ou não, uma
pessoa para estar ao seu lado quando tiver medo. Poderá sonhar, ou não,
com suas leituras, mas aconselho que você use suas garras nos momentos
difíceis, lute sempre que for necessário, brigue sempre que tiver razão e
não dê ouvidos a tudo que lhe digam. Siga com o coração e escolha uma
arma para lutar com seus inimigos !" Dito isso entregou-me um papel com essas mesmas palavras escritas para que eu guardasse.
Confesso que vi o diabo transformar-se em anjo, fiquei pasma ! Ela sabia
de tudo, ela via tudo, ela sentia tudo. Suas palavras, a minha memória
nunca apagou. Levou-me ao banho, troquei minha roupa e fui direto para a
aula,dali para a recreação. Resolvi que minha luta começaria,escolhi a
minha arma e ,desde então,decidi ouvir só o que queria ouvir. Continuei
apanhando, mas agora, reagia também.
Tenho memória seletiva, O seu uso não me faz mal algum, pelo contrário,
muitas vezes livra-me de situações embaraçosas, as famosas "saias
justas" em que nos metemos, então lanço mão da famosa frase: "Desculpe,
tenho memória seletiva, não só para assuntos ruins mas muitas vezes
porque os momentos foram muito empolgantes." Tudo fica bem esclarecido.(elpis)
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