quinta-feira, 9 de junho de 2022

Testamento Lírico

Se quiserem saber se pedi muito

Ou se nada pedi, nesta minha vida,

Saiba, senhor, que sempre me perdi

Na criança que fui, tão confundida.

À noite ouvia vozes e regressos.

A noite me falava sempre sempre

Do possível de fábulas. De fadas.

O mundo na varanda. Céu aberto.

Castanheiras doiradas. Meu espanto

Diante das muitas falas, das risadas.

Eu era uma criança delirante.

Nem soube defender-me das palavras.

Nem soube dizer das aflições, da mágoa

De não saber dizer coisas amantes.

O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendo

Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!

Ter escolhido um mundo, este em que vivo

Ter rituais e gestos e lembranças.

Viver secretamente. Em sigilo

Permanecer aquela, esquiva e dócil

Querer deixar um testamento lírico

E escutar (apesar) entre as paredes

Um ruído inquietante de sorrisos

Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.

E ainda que minha voz não seja ouvida

Um dentre vós, resguardará (por certo)

A criança que foi. Tão confundida.(Hilda Hilst)

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