segunda-feira, 27 de junho de 2022

Poemas aos Homens do nosso Tempo

Enquanto faço o verso, tu decerto vives.

Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.

Dirás que sangue é o não teres teu ouro

E o poeta te diz: compra o teu tempo.

Contempla o teu viver que corre, escuta

O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.

Enquanto faço o verso, tu que não me lês

Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.

O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:“Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas”.

Irmão do meu momento: quando eu morrer

Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:

MORRE O AMOR DE UM POETA.

E isso é tanto, que o teu ouro não compra,

E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto

Não cabe no meu canto.(Hilda Hilst)
Quero ficar só. Gosto muito das pessoas, mas essa necessidade voraz que às vezes me vem de me libertar de todos. Enriqueço na solidão: fico inteligente, graciosa e não esta feia ressentida que me olha do fundo do espelho. Ouço duzentas e noventa e nove vezes o mesmo disco, lembro poesias, dou piruetas, sonho, invento, abro todos os portões e quando vejo a alegria está instalada em mim. (Lygia Fagundes Telles) 

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Mas é preciso escolher. Porque o tempo foge. Não há tempo para tudo. Não poderei escutar todas as músicas que desejo, não poderei ler todos os livros que desejo, não poderei abraçar todas as pessoas que desejo. É necessário aprender a arte de “abrir mão” – a fim de nos dedicarmos àquilo que é essencial.(Rubem Alves)

terça-feira, 21 de junho de 2022

Então tem também a pressa de mulheres e homens que saem, exaustos, depois de um dia inteiro de trabalho, com as compras necessárias, rumo à escuridão. São heróis, dando os passos que faltam para a linha de chegada sabendo que estão sempre em último lugar. Uma corrida olímpica que acontece todos os dias em direção à linha de chegada. E a linha de chegada é uma bandeja de comida em frente à TV.(Elvira Vigna)

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Saudade

Mal desperto ela entra sem nem pedir licença.

A saudade entra pela minha janela des ca ra da men te

trazendo estranhamento.

Fico parecendo uma gaveta lotada de guardados que incessantemente teima em não fechar

Se fechada à força...

Dói essa dor de saudade,

e saudade

é irritante, dorme e acorda com a gente.

Ela é tão abrangente que nem se pode dizer se há saudade alegre ou triste porque saudade não se descreve é um aperto no peito, é uma imagem breve ou algum leve pensamento.

Ela parece ser a dona do meu tempo presente

Sei que é passado, como passado não volta

Sinto muito, e tanto que prefiro aceitar o que não posso mudar

Me pergunto como podem os poetas fazerem dela rimas belas... talvez a entendam....

Eu não entendo ou quem sabe a rejeite somente.

Só sei dizer que saudade machuca a gente.(elpis)

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Testamento Lírico

Se quiserem saber se pedi muito

Ou se nada pedi, nesta minha vida,

Saiba, senhor, que sempre me perdi

Na criança que fui, tão confundida.

À noite ouvia vozes e regressos.

A noite me falava sempre sempre

Do possível de fábulas. De fadas.

O mundo na varanda. Céu aberto.

Castanheiras doiradas. Meu espanto

Diante das muitas falas, das risadas.

Eu era uma criança delirante.

Nem soube defender-me das palavras.

Nem soube dizer das aflições, da mágoa

De não saber dizer coisas amantes.

O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendo

Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!

Ter escolhido um mundo, este em que vivo

Ter rituais e gestos e lembranças.

Viver secretamente. Em sigilo

Permanecer aquela, esquiva e dócil

Querer deixar um testamento lírico

E escutar (apesar) entre as paredes

Um ruído inquietante de sorrisos

Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.

E ainda que minha voz não seja ouvida

Um dentre vós, resguardará (por certo)

A criança que foi. Tão confundida.(Hilda Hilst)

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Em Pé

Continuo em pé
por pulsar
por costume
por não abrir a janela decisiva
e olhar de uma vez a insolente
morte
essa mansa
dona da espera

continuo em pé
por preguiça nas despedidas
no fechamento e demolição
da memória

não é um mérito
outros desafiam
a claridade
o caos
ou a tortura

continuar em pé
quer dizer coragem

ou não ter
onde cair
morto.( Mario Benedetti)